domingo, 15 de novembro de 2015

A porção intacta

Há um livro que gosto muito que se chama "O ano do pensamento mágico". Ele é o primeiro de uma série de dois livros (o segundo se intitula "Noites azuis"), e conta a história real da autora, Joan Didion, do momento em que subitamente perde o marido _ tomando vinho durante o jantar _ até o ponto em que tem que reorganizar e refazer toda a sua vida sem ele. Paralelo a isso, uma nova etapa tem que ser vencida quando a única filha do casal vem a falecer de uma doença rara e desconhecida.

O livro é uma pancada de realidade nua e crua, e nos leva a refletir sobre o sentido de continuar vivendo e buscando alternativas quando todo o norte de nossas vidas se vai. Logo no início do livro, as frases iniciais dão o tom exato dessa narrativa: "A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente".

A vida se transforma a todo momento. Nossos dias são bagunçados continuamente, e temos que resistir de alguma maneira. Temos que atravessar nossas bagunças diárias para alcançarmos a porção de nós que ainda conserva a calmaria e a paz. A porção de nós que é um rio de águas mansas, apesar de todo barulho do lado de fora.

Todos nós, com raras exceções, já passamos por sustos _ pequenos ou grandiosos_ assim. Viradas bruscas no curso de nossas existências que nos abalaram por completo no início, mas que depois nos permitiram reavaliar o chão em que estávamos pisando.

Alguns lutos são maiores que outros. Mas ainda assim, existe uma semente, enterrada bem no fundo de nosso cerne, que pode florescer novamente. Essa semente tem voz, e nos fala que somos capazes de encontrar algum resquício de sentido no meio de tantas perdas, dificuldades e falhas.

Talvez você goste de cantar, talvez prefira pedalar. Pode ser que goste de escrever, ou de alguma forma escolha ler. Talvez você se encontre ajudando alguém, talvez perceba a sorte que tem.

Descobrir a porção intacta de nós mesmos leva tempo e algum auto conhecimento. Mas ela está lá, esperando ser explorada, como um estepe para momentos vazios.

A porção intacta representa o combustível na hora de virar o jogo. A força por trás de toda dor, capaz de nos levantar de novo. A esperança, nos bastidores da tristeza, capaz de nos impulsionar para outros voos. O desafio de nos tornarmos o melhor que podemos ser com o pouco que restou.

Enquanto escrevo este texto, penso nas alternativas que tenho depois que minha página no Facebook foi roubada. Entendo que é pouco perante tantos lutos grandiosos, mas a minha porção intacta mantém-se firme, confiante de que não podem me roubar de mim. Ainda que minha propriedade tenha sido roubada, a capacidade de me expressar através da palavra escrita continua comigo. Não há apenas uma porção intacta em mim. Há muitas porções intactas, e é com elas que pretendo seguir em frente, lutando para recuperar o que foi roubado ou começando novamente. Como cantou lindamente Renato Russo: "Podem até maltratar meu coração, que meu espírito ninguém vai conseguir quebrar..."

Que a gente descubra que é maior que aquilo que nos faz mal. 

Que a gente tenha esperança mesmo quando a vida toma um rumo diferente daquele que a gente pensou que pudesse ser o nosso final. Que a gente aprenda que todos temos uma porção intacta, e é através dessa porção que podemos recomeçar de que jeito for. Que a gente não perca a fé, mesmo quando tudo não conspira a nosso favor. Que a gente encontre o cerne de toda alegria e o centro de toda poesia. Que a gente esteja aprendendo continuamente, e resistindo bravamente. E que a gente consiga voar, mesmo quando o mundo parece desabar...

(Fabíola Simões)

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