terça-feira, 26 de julho de 2016

Poderia ter sido eu...


Era meu caminho habitual. Fosse um dia de chuva, estaria passando por baixo daquela marquise, como de costume. De repente olhei para o lado esquerdo e tudo desabava. Só pensei em ir em direção à moça que vi caída com o braço esquerdo por debaixo dos pedaços de concreto. Larguei a mochila e, junto com dois caras que correram em direção à moça, tentamos levantar o tal concreto. Era demasiadamente pesado e a lateral da viga de sustentação, balançava. Por uns minutos tentamos em vão pois nada se mexia. Foi quando chegou mais um rapaz. Me afastei quando percebi que havia outra moça alguns metros dali também caída, porém de bruços e desacordada. Talvez já estivesse morta. Naquele momento só me veio à cabeça, ligar para pedir ajuda. O Samu só dava ocupado. Foi quando outra moça passou por mim e disse que já haviam chamado socorro e que o melhor era nos afastarmos daquela marquise antes que mais pedaços caíssem sobre aqueles que tentavam ajudar.

Soube mais tarde, ainda pela manhã, que a moça loira que estava desacordada havia falecido. Passei o dia inteiro no trabalho péssima, num misto de sentimentos. Por uns instantes me caiu a ficha: poderia ter sido eu. À noite fui à PUC nadar e tentar abstrair, esquecer todos pensamentos ruins daquela quinta-feira. Saí ainda mais tensa. Como se carregasse na água um peso imenso sobre os ombros. Não consegui me concentrar, não relaxei. Era como se as luzes apagassem e as cortinas se fechassem de repente. Me sentia zonza, impotente, visivelmente triste. Haviam me roubado naquele momento a capacidade do encanto.

Ao chegar em casa, já na cama, desabei a chorar tal qual uma criança, feito um escritor sem seus parágrafos a escrever ou relendo coisas escritas que naquele momento não faziam sentido algum. Meus bichos sem entender nada, me acariciavam como se pudessem enxergar todo meu cansaço, toda minha tristeza. Faltam-me palavras para descrever a loucura que foi aquele dia. Deitava minha cabeça no travesseiro e tudo parecia rodopiar, incansavelmente, encobrindo meu sorriso.

Sexta não conseguia levantar da cama. Meu corpo estava em frangalhos e minha alma divagando por lugares desconhecidos. Olhar fixo para um nada e a música abafada dentro do peito. Ao ligar a televisão, soube então que a outra moça também havia falecido. E um desespero tomou conta do meu coração, a voz embargou. Fiquei pensando que poderia ter sido eu. E não havia feito tudo que gostaria de fazer, não havia sequer dito a algumas pessoas o quanto elas me são especiais, o quanto cresci e aprendi junto delas. Não agradeci por todas as que passaram pela minha vida e que, se não permaneceram, pelo menos me ajudaram de alguma maneira a ser uma pessoa melhor, em algum instante me proporcionaram felicidade ou estiveram presentes em momentos importantes da minha vida e contribuíram para meu amadurecimento, minha maneira de enxergar a vida atualmente.

Poderia ter sido eu naquele dia. E não me despedi dos que amo. Não deixei um pedido a quem ficar com meus filhotes, a quem proteger e cuidar da minha afilhada, quem acalentaria meus pais e minhas preciosidades. A verdade é que ainda não me desliguei daquele dia trágico. Uns me disseram hoje que estou estranha e não discordo. Um turbilhão de coisas passa pela minha cabeça desde então, faltam-me as poesias dos afetos a contagiar meus dias.

Como escreveu Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” E é por aí mesmo. Ainda me pego com os olhos embaçados, um tanto quieta, com poucos movimentos e me entristeço ao lembrar do meu casaco sujo da poeira do concreto. Pequenas coisas que fazem afrouxar um pouco o riso, mas também que me relembram constantemente da oportunidade valiosa que é a vida. Este momento mágico e instantâneo. E que pode desaparecer numa fração de segundos, num piscar de olhos. Ando procurando arejar um pouco a alma. Tentando fazer florescer o sorriso bom de paz e leveza aos meus olhos. Esquecer da confusão toda daquele dia tão escuro.

Poderia ter sido eu. E não amei o suficiente, não brinquei, não ri, não nadei tudo que gostaria de nadar, não alegrei as pessoas que adoro, não sorri como poderia, não agradeci como deveria.

Um comentário:

Meg Ryan 🐈💓

“Há quem não mencione a palavra amor e fale sobre ele em cada gesto que diz” Falar algo diferente de AMOR INCONDICIONAL pela guriazi...